Antes de mais nada,
"auto" é uma designação genérica para peça, pequena representação
teatral. Originário na Idade Média, tinha de início caráter religioso; depois
tornou-se popular, para distração do povo. Foi Gil Vicente (1465-c. 1537) que
introduziu esse tipo de teatro em Portugal.
O "Auto da Barca do
Inferno" (c. 1517) representa o juízo final católico de forma satírica e
com forte apelo moral. O cenário é uma espécie de porto, onde se encontram duas
barcas: uma com destino ao inferno, comandada pelo diabo, e a outra, com
destino ao paraíso, comandada por um anjo. Ambos os comandantes aguardam os
mortos, que são as almas que seguirão ao paraíso ou ao inferno.
Resumo do enredo
Os mortos começam a chegar. Um
fidalgo é o primeiro. Ele representa a nobreza, e é condenado ao inferno por
seus pecados, tirania e luxúria. O diabo ordena ao fidalgo que embarque. Mas
ele, arrogante, julga-se merecedor do paraíso, pois deixou muita gente rezando
por ele. Recusado pelo anjo, encaminha-se, frustrado, para a barca do inferno;
mas tenta convencer o diabo a deixá-lo a rever sua amada, pois esta "sente
muito" sua falta. O diabo destrói seu argumento, afirmando que ela o
estava enganando.
Um agiota chega a seguir. Ele
também é condenado ao inferno por ganância e avareza. Tenta convencer o anjo a
ir para o céu, mas não consegue. Também pede ao diabo que o deixe voltar para
pegar a riqueza que acumulou, mas é impedido e acaba na barca do inferno.
O terceiro indivíduo a chegar é o
parvo (um tolo, ingênuo). O diabo tenta convencê-lo a entrar na barca do
inferno; quando o parvo descobre qual é o destino dela, vai falar com o anjo.
Este, agraciando-o por sua humildade, permite-lhe entrar na barca do céu.
Mais personagens
A alma seguinte é a de um sapateiro,
com todos os seus instrumentos de trabalho. Durante sua vida enganou muitas
pessoas, e tenta enganar também o diabo. Como não consegue, recorre ao anjo,
que o condena como alguém que roubou do povo.
O frade é o quinto a chegar...
com sua amante. Chega cantarolando. Sente-se ofendido quando o diabo o convida
a entrar na barca do inferno, pois, sendo representante religioso, crê que
teria perdão. Foi, porém, condenado ao inferno por falso moralismo religioso.
Brísida Vaz, feiticeira e
alcoviteira, é recebida pelo diabo, que lhe diz que seu o maior bem são
"seiscentos virgos postiços". Virgo é hímen, representa a virgindade.
Compreendemos que essa mulher prostituiu muitas meninas virgens, e
"postiço" nos faz acreditar que enganara seiscentos homens, dizendo
que tais meninas eram virgens. Brísida Vaz tenta convencer o anjo a levá-la na
barca do céu inutilmente. Ela é condenada por prostituição e feitiçaria.
Judeus e "cristãos
novos"
A seguir, é a vez do judeu, que
chega acompanhado por um bode. Encaminha-se direto ao diabo, pedindo para
embarcar, mas até o diabo recusa-se a levá-lo. Ele tenta subornar o diabo,
porém este, com a desculpa de não transportar bodes, o aconselha a procurar
outra barca. O judeu fala então com o anjo, porém não consegue aproximar-se
dele: é impedido, acusado de não aceitar o cristianismo. Por fim, o diabo
aceita levar o judeu e seu bode, mas não dentro de sua barca, e, sim,
rebocados.
Tal trecho faz-nos pensar em
preconceito anti-semita. É necessário entender, porém, que durante o reinado de
dom Manuel, de 1495-1521, muitos judeus foram expulsos de Portugal, e os que
ficaram, tiveram que se converter ao cristianismo, sendo perseguidos e chamados
de "cristãos novos". Ou seja, Gil Vicente segue, nesta obra, o espírito
da época.
Representantes do judiciário
O corregedor e o procurador,
representantes do judiciário, chegam, a seguir, trazendo livros e processos.
Quando convidados pelo diabo para embarcarem, começam a tecer suas defesas e
encaminham-se ao anjo. Na barca do céu, o anjo os impede de entrar: são
condenados à barca do inferno por manipularem a justiça em benefício próprio.
Ambos farão companhia à Brísida Vaz, revelando certa familiaridade com a
cafetina - o que nos faz crer em trocas de serviços entre eles e ela...
O próximo a chegar é o enforcado,
que acredita ter perdão para seus pecados, pois em vida foi julgado e
enforcado. Mas também é condenado a ir ao inferno por corrupção.
Por fim, chegam à barca quatro
cavaleiros que lutaram e morreram defendendo o cristianismo. Estes são
recebidos pelo anjo e perdoados imediatamente.
O bem e o mal
Como você percebeu, todos os
personagens que têm como destino o inferno possuem algumas características
comuns, chegam trazendo consigo objetos terrenos, representando seu apego à
vida; por isso, tentam voltar. E os personagens a quem se oferece o céu são
cristãos e puros. Você pode perceber que o mundo aqui ironizado pelo autor é
maniqueísta: o bem e o mal; o bom e o ruim são metades de um mundo moral
simplificado.
Características
O "Auto da Barca do
Inferno" faz parte de uma trilogia (Autos da Barca "da Glória",
"do Inferno" e "do Purgatório"). Escrito em versos de sete
sílabas poéticas, possui apenas um ato, dividido em várias cenas. A linguagem
entre os personagens é coloquial - e é através das falas que podemos
classificar a condição social de cada um dos personagens.
Valores de duas épocas
Escrita na passagem da Idade
Média para a Idade Moderna, a obra oscila entre os seus valores morais de duas
épocas: ao mesmo tempo que há um severa crítica à sociedade, típica da Idade
Moderna, a obra também está religiosamente voltada para a figura de Deus, o que
é uma característica medieval.
A sátira social é implacável e
coloca em prática um lema, que é "rindo, corrigem-se os defeitos da
sociedade". A obra tem, portanto, valor educativo muito forte. A sátira
vicentina serve para nos mostrar, tocando nas feridas sociais de seu tempo, que
havia um mundo melhor, em que todos eram melhores. Mas é um mundo perdido,
infelizmente. Ou seja, a mensagem final, por trás dos risos, é um tanto
pessimista.
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